Elizabeth 2ª acompanha Nelson Mandela, então presidente sul-africano, durante a visita dele à Inglaterra em 1996. Com silêncio e cultura p...
Elizabeth 2ª acompanha Nelson Mandela, então presidente sul-africano, durante a visita dele à Inglaterra em 1996.
Com silêncio e cultura pop, Elizabeth 2ª lavou o sangue de seu colonialismo.
A morte da rainha Elizabeth 2ª foi pauta de diferentes veículos de comunicação nesta quinta-feira (8). Não é para menos. A monarca acompanhou mudanças no mundo ao longo das suas setes décadas de reinado e foi hábil em manter a imagem de uma monarquia sólida nesse período. Direcionar os pesares e as lamentações à família é importante. Não se pode, porém, ignorar o debate sobre o império colonial que Elizabeth herdou, na década 1950. Afinal, ela nunca renunciou a ele, já que continuou a reinar em algumas das suas ex-colônias na América, África e Ásia, e não demonstrou arrependimento ou pediu desculpas pelas violências do colonialismo inglês nesses territórios.
A rainha inabalável (ou "a avó do mundo", "Betinha" e tantas outras formas afetivas criadas para Elizabeth 2ª) herdou um vasto império que vivenciava tensões, conflitos e hostilidades. Quando soube do falecimento do seu pai, o rei George 6º, em 1952, ela estava no Quênia, a colônia na África Oriental que, meses depois, foi palco de um dos capítulos mais brutais de seu reinado: a repressão à revolta Mau-Mau.
O Quênia teve suas terras intensamente espoliadas. Nativos perdiam os lugares onde viviam, transformados em propriedades dos colonos brancos que chegavam. Os conflitos agrários se acirraram após a 2ª Guerra Mundial com uma migração europeia para a região. Os ataques ao gado apliavam o medo de revoltas nativas generalizadas entre os colonos brancos nessa época. Não era por menos. Para termos uma ideia, os colonos brancos não chegavam a 1% da população, em 1950, mas detinham 25% das propriedades rurais. Foi essa colônia que Elizabeth 2ª visitou quando soube que era a nova rainha.
A situação na colônia foi o combustível para o movimento Mau-Mau, uma revolta anticolonial que conseguiu congregar os sentimentos de vários segmentos da população nativa contra o domínio britânico. As forças de segurança do império colonial de Elizabeth 2ª foram brutais na repressão ao movimento e hábeis em encobrir as atrocidades de modo a reforçar que os casos de violência eram a exceção e não a regra de seu colonialismo. Afinal, quantas vezes ouvimos falar nesse conflito? O mito da benevolência imperial britânica foi construído, essencialmente, em três frentes.
Controle das informações
A primeira consistiu no controle das informações coloniais guardadas como segredo de Estado ou em instituições coloniais que as separaram com a justificativa de serem tipologias documentais diferentes. À título de exemplo, há diversos relatórios de agentes coloniais que, por serem categorizados como sigilo de Estado, foram mantidos em segredos, mas vieram a público pelo Foreign Office, em 2011, porque um processo jurídico contra o Estado Britânico foi movido por ex-prisioneiros do movimento Mau-Mau.
Cultura pop
A segunda é o fomento de uma cultura visual da realeza íntegra a ser reproduzida através de cerimônias reais detalhadamente ensaiadas e exibidas nos meios de comunicação e nas produções audiovisuais. Como não relembrar a cena da série Netflix "The Crown" que retratou a visita da rainha ao Quênia como um evento popular e harmonioso? O mesmo Quênia que meses depois foi o palco da revolta Mau-Mau.
Trajetórias descoladas do colonialismo
A terceira consiste na elaboração de uma história metropolitana democrática dissociada das ações em território colonial, de modo a ser incapaz de demarcar como autoridades, empresários e burocratas transitaram e estabeleceram negócios no império. Não se pode ignorar que as riquezas e trajetórias políticas britânicas nasceram sim no colonialismo.
A respeito deste último ponto, não podemos esquecer também que a rainha Elizabeth 2ª exerceu uma atitude central na dissociação da monarquia britânica com o seu passado colonial, reforçando um papel de "neutralidade" no governo e se ausentando da exposição pública de suas opiniões. A sua missão era manter essa instituição de pé em um mundo de pós-guerra e de colonialismo em crise.
Embora ela tenha conseguido esse grande fato, é urgente enfrentar as feridas abertas que a rainha herdou e pelas quais nunca se responsabilizou. Evidenciar as suas ligações, demarcar as suas permanências e relembrar a violência colonial como parte constituinte da monarquia inglesa é essencial para um fazer histórico empenhado com o desmantelamento dos vestígios do colonialismo e, consequentemente, do seu racismo, que se perpetua nas sociedades contemporâneas.
*Marcus Vinicius de Oliveira é doutorando no Programa de Pós-graduação em História/UFF e membro da rede de Historiadorxs Negrxs e do Laboratório de História Oral e Imagem/UFF. Autor do livro 'À sombra do colonialismo: Fotografia, circulação e projeto colonial português (1930-1951)' da editora Letra & Voz (2021).
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